domingo, 16 de agosto de 2009

Uma carta.

Leitura realizada por M.,em sua carta autoral, para Luci Grey em um domingo de agosto.Trecho extraído do conto "O Monstro", contido no livro "Ensaio sobre a Revolução".



Lyon, 09 de Agosto de 2009


Ma Chérie,



O quê eu sinto, de forma simultânea, e penso de mim mesmo, resume-se em duas palavras: Nojo e vergonha. O casamento ideal de uma evidência gritante que foi cegada pela inocência à espera de sua ultrajante maturação. Não sinto vontade de chorar, ainda bem, pois as lágrimas aliviariam o que o tempo já tratou de pacificar.

A vergonha consiste em ter me tornado subserviente a um ser que representa as intemporais virtudes do homem: Vileza, manipulação e egoísmo. E tudo isso me faz sentir nojo da minha fraqueza e do homem. A princípio usei da compreensão, mas ela foi emotiva e errônea, pois acreditou em palavras belas e ensejadas. Eu sempre ouvia um “amo-te”, mas antes nunca havia parado para me perguntar “onde? Como?”. Caso tivesse feito, imagino que a resposta seria “Esse amor de que você fala. Eu não o sinto, não o toco, tampouco o vejo. Apenas ouço essas palavras belas, mas fáceis. E o que devo fazer com elas? Colocá-las em um ostensório e rezar para que um milagre se concretize?”. Foi exatamente isso que eu fiz. Mas até para um cético fundamentalista que reza de olhos vendados, iludido na penumbra da consciência alheia, esse misticismo torna-se, com o tiquetaquear do tempo, enfadonho e começa a cheirar a decadência.

Mesmo assim, a inocência não tinha sido totalmente metamorfoseada, esse molestamento emotivo tinha sido apenas o prelúdio. Tal pureza precisava chafurdar-se, emporcalhar sua probidade de modo irreversível. E ela o fez. Foi por isso que mesmo desvendado o cético continuou a rezar, mas dessa vez de olhos fechados e coração exangue, ensandecido para que ainda houvesse entre ele e sua causa uma migalha desse amor, mesmo que sujo, que pobre. Quando não houve mais sangue e o desespero se materializou, os olhos foram abertos e a letargia do cético quebrada com um impetuoso vômito sobre aquele altar adornado de sentimentos artificiais.

Uma vez um psicopata me disse que o homem é capaz de cometer o mais hediondo crime e ser indultado se possuísse a desculpa conveniente para tanto. E ele estava certo. Os nazistas, a exemplo, realizaram o holocausto com base na superioridade da raça ariana sobre as demais. E você ma chérie? Realizou seus atos baseando-se em que? Foi ao tentar compreender o incompreensível que eu esgotei o meu futuro em prol de um presente retroativo. Ma chérie, você ao menos tem essa desculpa? Esse álibi irrefutável para ações nefastas?

Depois usei do julgamento, que, diferentemente do imaginário popular, não foi indiferente nem gélido, e sim coerentemente imparcial. Caso não tenha ainda esboçado suas desculpas, atrelo-a ao meu veredicto: Um estratagema sórdido de um ser que foi vítima do amor e, por isso, escravizou outrem com base em sua vendeta arrivista, cujos beneficentes são seus inconscientes preceitos egoístas.

Você, má chérie, poderia ter me libertado desde da nossa última conversa, sentados cara à cara, no shopping, naquela mesma mesa onde tudo começou.Onde foi-lhe entregue o meu inventário. Mas não, eu era tão importante para você com minha capacidade racional de esmorecer suas frustrações e tornar-te sublime quando o espelho da tua consciência refletia uma imagem grotesca e repugnante. Você me cativou com seu ilusionismo intelectual e sua linguagem apelativa. Finalizando tudo ao enraizar em mim a semente da esperança inalcançável com essas improferíveis palavras “Agora, eu não quero ficar com você. Eu quero ficar com outra pessoa. Mas quando eu quiser ficar com você... Eu fico, porque eu sou... um ESPÍRITO LIVRE”.

Intitulo-me um sonhador ma chérie. Acalmo-lhe dizendo que tal experiência não mordeu meus sonhos ao ponto de troná-los mórbidos ou rancorosos. É por isso que vou caminhar e não fugir. E mesmo que o fizesse, estaria fugindo para outro lugar melhor que este. E isso. Isso se chama “migrar”. Finalmente vou migrar para onde migram os pássaros.

Ps.: Sei que essa carta pode gerar uma necessidade de resposta e, por conseguinte, de uma conversa. Mas peço-lhe, por favor, que não tente, pois a verdade sempre será salientada no modo como somos, na pessoa que si é. Sem mais ressalvas.

M.

Nenhum comentário:

Postar um comentário