domingo, 16 de agosto de 2009

Décima primeira Parte

Início anunciativo de tempos vindouros.



A porta rangia enquanto o velho careca de poucos fios prateados adentrava em sua casa. Trancou-a com a mesma placidez da abertura, ouvindo mais uma vez o ruído que para ele já era rotineiro.
-Já são quase doze horas!- disse em tom de preocupação. - Tenho que preparar o almoço. Acho que passei tempo demais naquela praça, embora me tenha sido muito produtivo.

Observava com riso a sua recente pintura, seus olhos reluziam um ar de satisfação, como se dissesse a si mesmo “Este quadro arrepiaria, com inveja, os cabelos da barba do velho Monet”. Era dessa lúdica pretensão que gargalhava consigo mesmo ao colocar o quadro para secar:
-Arrepiar de inveja a barba do velho Monet?!Como pode isso?

Depois do almoço sentou-se confortavelmente no sofá, observando a limitada paisagem que sua janela o proporcionava. Tinha o olhar persistente, mas vago. Havia se dispersado em suas dissipações antigas. A preguiça do permanecer na retrospectiva o lembrou que tinha obrigações a fazer, olhou de soslaio para sua estante de livros.
-Esqueci que hoje era dia de te arrumar.

Levantou-se com a mesma placidez de sempre, caminhando vagarosamente para sua única obrigação diária. Era uma estante tão antiga, assim como os livros que ela abrigava, um acervo fenomenal de um eterno amante da literatura. Retirava-os com paciência, muitas vezes abrindo-os e lendo aquilo que a memória o guiava. Encontrou um antigo livro de capa amarela com um pássaro estampado na capa. Folheou algumas páginas, como um errante que procura em uma bússola a direção exata para o destino que ele desconhece. Parou em uma determinada página, enquanto seus olhos planavam no papel, mergulhando sua mente nas palavras que ali havia:

"Consta que o mundo tem muitos anos. Porém raramente ele dura mais de um século. Somos nós que envelhecemos... A maior parte do tempo o mundo desperdiça dormindo... Apenas de vez em quando, ele esfrega os olhos e desperta para a consciência de si mesmo".

"A vida precisa de esquecimento. A saúde do homem depende de sua capacidade de esquecer. De cada ação e de cada momento de felicidade também faz parte do esquecimento. O conhecimento nunca deve se sobrepor a vida".

Fechando o livro, colocou-o junto à pilha dos demais que estavam sendo retirados da estante. O próximo que a mão do velho caçou, em ordem de sua mente, foi um atual roteiro cuja página de destino ele conhecia. Abriu-o com certa ansiedade, dessa vez leu em voz alta para si:


"Porque mesmo que você não saiba para onde vai, ajuda saber que não está sozinho. Ninguém tem todas as respostas. Às vezes, o melhor que podemos fazer é pedir desculpas. E deixar o passado no passado. Outras vezes precisamos olhar para o futuro, e saber que mesmo quando achamos que vimos de tudo, a vida ainda pode nos surpreender. E ainda podemos surpreender a nós mesmos".

Viu cair do roteiro um pedaço de papel. Abaixou-se para pegá-lo, mas não chegou a fazê-lo, pois uma dor pontiaguda que surgira na coluna o tolheu. Com o corpo em agonia, permaneceu parado a fitar o que aquele pedaço de papel o reservava:


A Liberdade

Que espaço o passado reserva a minha liberdade hoje?

A liberdade é uma eterna conquista.


Foram essas máximas que o levaram a perceber que toda essa higiene não passou de um lapso pessoal. Não era dia de limpar a estante. Ele já tivera feito isso ontem. Aos poucos foi recolocando tudo em seu devido lugar, inclusive sua vida. O relógio marcava quase dez horas quando ele se deitou. Dessas vez com uma nova perspectiva,dessa vez com novos sonhos.

O galo não chegou nem a cantar e o velho careca de poucos fios prateados já estava despertado. Tirou do seu antigo encarte o seu futuro disco-Imitação da Vida; Ligou sua vitrola; Caminhou até sua horta orgânica; Colheu algumas folhas de menta; Tomou chá verde com mente; Vestiu sua roupa de fitness e calçou seu tênis; Retirou seu ipod do carreador e o pôs nos ouvidos; Abriu a barulhenta porta com um sorriso e saiu. Saiu para caminhar.




FIM

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