terça-feira, 31 de maio de 2011

Segunda parte do Mosaico fictício de um breve histórico conjugal

Com a batuta na mão, Igor sobe ao estrado para um ensaio de A Sagração da Primavera. Um lenço pende ondulante do bolso de seu paletó.Um bigode preenche o espaço acima do lábio superior. Os óculos não têm hastes; firmam-se em seu rosto graças à pressão adesiva das almofadinhas alojada em cada um dos lados do nariz.

Prepara a orquestra. Os olhos se estreitam e a boca se entreabre. Contando com a mão esquerda e convocando com a direita, dá vida à música. Seis notas desoladas flutuam do fagote. Como que provocados, os outros instrumentos de sopro feitos de madeira se manifestam. Os primeiros violinos respondem; as flautas gorjeiam, nervosas. Vem o arroubo das segundas trompas, seguido de abruptas ejaculações dos metais e das cordas.

Os dedos de Igor se enrijecem para sinalizar um ritmo mais rápido; as mãos traçam arabescos no ar. Depois relaxam para comandar harmonias mais tranqüilas. Escolhendo os instrumentos, consegue uma acentuação aqui, uma suavização ali. O modo como procura os músicos com os olhos e a maneira como os músicos buscam o olhar dele deixam evidente que há uma furtiva competição por sua atenção. Não hesita em explorar essa rara devoção, enquanto procura, o tempo todo, tecer os fragmentos em um todo único.

De súbito, uma ruga se forma em sua testa. Está faltando alguma coisa. Baixando a batuta, bate-a com exasperação na estante e manda a orquestra parar. Volta-se para o timbaleiro, que sorri timidamente sob o ninho dos cabelos loiros, e brada:

- Essa passagem é para ser tocada em fortíssimo! O couro está aí para ser percutido, não acariciado!

Anda, solene, do estrado para o piano. O salão onde estão ensaiando é mal aquecido e seus passos ressoam alto no ar frio. Sem se sentar, toca alguns compassos mostrando com vigor o que deseja.

- Ouviu?

Mortificado, mas ainda segurando as baquetas, o músico enrubesce.

Voltando ao estrado, Igor retoma a música alguns compassos antes da passagem que o irritara. Move a cabeça com aprovação quando o timbaleiro reage de acordo com os movimentos enfáticos da batuta.

Então, fecha os olhos e ouve. Não precisa ler a partitura. Rege cegamente; sabe a música de cor. Sente os golpes e as gentilezas, vê as cores que as notas criam em sua mente. Um aroma de resina sobe pungentemente dos instrumentos de cordas. Ouve os familiares acordes em mi bemol e fá bemol maior deslizarem um contra o outro.

A música traz com ela imagens de quando foi revisada. Igor se vê ao piano, em Bel Respiro, com as canetas- tinteiro e os manuscritos apoiados em cima das teclas. Chamados à lembrança, também chegam o canto dos pássaros e a luz do sol que invadia o estúdio. E, não solicitada, vem a lembrança de Coco, as feições dela trazidas à vida pelo ritmo. A boca larga, o curto cabelo escuro, as sobrancelhas grossas, as mãos reagindo às modulações da música do piano. Os beijos dela. A maneira como seus olhos escureciam quando a penetrava, o modo como se movia quando faziam amor.

A Visão o dilacera.

Surpreende-se ao descobrir como a música o emociona. Até aquele momento, vira a música como absoluta, pura e autêntica, uma essência que nada representava a não ser a si mesma. Depois de resistir à expressiva qualidade de sua obra por tanto tempo, se vê dominado pelas imagens e lembranças que ela evoca. A garganta dói. As pernas tremem. Ouvindo a música, agora admira-se do impacto que causa. No entanto, não há nada de sentimental nessa experiência, nada de dramático ou açucarado. As lembranças são claras e exatas, e a sensação de perda ainda mais pungente. Sente a tristeza cair sobre ele como um fardo.

O violinista spalla, o músico mais próximo de Igor, o mais ansioso por captar seu olhar, testemunha sozinho as lágrimas crescerem no olhar do regente.

Igor sente os olhos rasos d’água, lágrimas que são lentes capazes de focalizar todas as cores e todos os desejos, toda a ternura e todas as carícias de seu relacionamento com Coco, destilando por um instante os meses que havia passado em Garches. Então, a gota de uma delas, já distendida, rompe-se, e, com ela, a recordação do relacionamento do dois estilhaça em mil fragmentos. Irreparavelmente. Em um rompante, a música explode em sua consciência. A percussão soa, as cordas aumentam a pressão e os metais entram em colisões orgíacas. Magníficas guinadas de som.

E, ao se romper, a lágrima desliza por seu rosto, mais devagar quando encontra a ruga vincada ao lado do farto nariz. Por fim, visita-lhe a boca, onde é atraída pela caverna escura, desintegrando-se em sua língua.

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