segunda-feira, 30 de maio de 2011

Primeira parte do Mosaico fictício de um breve histórico conjugal


Naquela manhã, conforme anunciado nos jornais, houvera um abate de pombos. Os cadáveres das aves cobriam todos os lugares para os quais olhava. Bulevares e ruas estavam repletos de aves mortas.

Horrorizada com a visão desse massacre, Coco também se surpreendera com o súbito silêncio que causara. A não ser pelo rumor do trânsito, não se ouvia na cidade nenhuma música de fundo. A melodia fornecida pelos pássaros, um tipo de arrulho liquefeito, desaparecera. Agora, de repente, tudo parecia estático demais. A neblina agarrava-se as árvores, transformando-as em fantasmas. A cidade parecia desbotada, desprovida de suas peculiares cores. Um fedor de decomposição subira às narinas de Coco, quase fazendo-a desmaiar.

De volta à suíte que mantinha no Ritz, deitou-se na cama de solteiro para descansar. Era seu dia de folga; só iria trabalhar na manhã seguinte. Ao redor, as paredes brancas, os vasos com grandes arranjos de flores e as estantes repletas de livros com encadernação de couro. Mas, dentro dela, crescia uma sensação de vazio.

...

Pouco a pouco, os fios emaranhados das preocupações presentes foram se desembaraçando, dando lugar às lembranças da luz do sol, do canto dos pássaros e dos acordes de um piano. Ritmos mesclando-se de modo imperceptível ao compasso de sua respiração, como se ela deslizasse para uma inconsciência onírica e sucumbisse a um sono profundo.

...

Naquele instante, sentiu algo irrevogável envolvê-la. E, em uma fração de segundo, antes que a figura da morte a dominasse, quando as últimas moléculas de oxigênio ainda lhe chegavam ao cérebro, um milhão de imagens transformaram-se em uma membrana palpitante na escuridão de seu olhar.

Tudo veio à tona com a nitidez dos espelhos e o brilho difuso dos sonhos. E, nessa luminosidade final, recordou como ele se inclinava para beijá-la; lembrou-se de cada detalhe dos olhos escuros de Igor.

Soltou em um murmúrio:

- Então é isso!

Em seguida, caiu em silêncio absoluto. O rosto perdeu a expressão. A sua volta, tudo o que podia ver era escuridão. O Universo tornou-se um vácuo.



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